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Esporte

Vem aí uma guerra: FIA é contra o direito de veto da Ferrari na Fórmula 1

Presidente da entidade, o francês Jean Todt, concorda com os novos donos da F1 que a escuderia italiana deveria perder o atual privilégio que consta no Acordo da Concórdia

Globo Esporte

14 de Março de 2018 - 16:37

Jean Todt, presidente da FIA, colocou a mão em um vespeiro, não de abelhas europeias, relativamente calmas e de fácil manuseio, mas africanas, agressivas e capazes de em curto espaço de tempo injetar elevadas doses de toxina nos que interpretam como “agressores”. Todt afirmou durante conversa com jornalistas esta semana, em Londres, e reproduzida pelo site inglês Autosport.com, que a Ferrari deveria perder o direito a veto no regulamento da F1.

Nem todos sabem. A Ferrari tem tanto poder na F1 que mesmo as propostas de regras, ou mudanças delas, aprovadas por todos os demais times, portanto supostamente de interesse da competição, podem não ser colocadas em prática caso a equipe italiana não deseje, não corresponda aos seus anseios.

A reportagem lembra que a última vez em que os italianos utilizaram essa prerrogativa, interpretação nossa, bastante anacrônica, foi em 2015, quando todos concordaram em estabelecer um valor máximo a ser cobrado pela cessão das unidades motrizes e sistemas de transmissão às escuderias que não as produzem. A Ferrari disse “não”. Ela as vende para a Sauber e Haas.

Quando diretor da Ferrari, de 1993 a 2007, Todt nunca se manifestou contra o direito de veto. Mas não foi por esse motivo que a escuderia conquistou cinco títulos de pilotos seguidos com Michael Schumacher, de 2000 a 2004, e seis de construtores.

Todt citou o veto porque os líderes dos direitos comerciais da F1, o grupo norte-americano Liberty Media, já iniciou conversas com todos os segmentos da F1 visando uma profunda revisão no que podemos definir como o seu estatuto, o chamado Acordo da Concórdia, contrato que estabelece quase tudo na relação entre os times, os donos dos direitos comerciais e a FIA. A atual versão desse acordo foi assinada em 2013 e terminará no fim de 2020.

O direito de veto da Ferrari está discriminado no acordo, dentre tantos outros aspectos da F1, como o importante critério de distribuição do 1,2 bilhão de euros (R$ 4,8 bilhões) arrecadado por ano pela Formula One Management (FOM), resultante da venda dos direitos de TV, valor pago pelos promotores de GP a cada edição do evento, associação de empresas ao nome F1, e comercialização de espaços publicitários nos autódromos, dentre outras fontes.

Chase Carey, Sean Bratches e Ross Brawn, os líderes do Liberty Media, sabem das dificuldades de rever seja lá o que for na F1 e por isso já procuram convencer a opinião pública do quanto o evento ganharia se suas ideias fossem implementadas. Todt tem visão semelhante sobre alguns dos objetivos do Liberty Media e, nos que concorda, expõe sua opinião, como agora, defendendo o fim do poder de veto da Ferrari.

Revolução histórica

O que o Liberty Media quer para a F1 é reduzir os custos de participação, distribuir melhor o dinheiro arrecadado, eliminar privilégios, atrair os jovens, simplificar o regulamento, permitir que mais equipes tenham acesso a lutar pelas vitórias, hoje restrito a duas ou três, dentre as dez existentes, bem como estimular o surgimento de novas.

Mas para isso é preciso convencer os diretores dos times de que o modelo atual, concebido em outra época do mundo, deve ser esquecido quase por completo. Carey já falou sobre a Ferrari em encontro informal com a imprensa, onde o GloboEsporte.com estava presente: “Eles têm de entender que com os 70 milhões que recebem por conta da sua história, e ninguém discute sua riqueza, nós faríamos dois times mais fortes”.

É uma referência aos 70 milhões de euros que a Ferrari recebe por conta de ser a única a disputar o mundial de F1 desde a sua origem, em 1950. Independente da sua colocação no campeonato de construtores, o principal critério para distribuição do dinheiro, a Ferrari recebe os 70 milhões de euros. Como por conta do seu orçamento e competência dos profissionais está quase sempre entre os três primeiros, leva para casa, ao longo do ano, outros 70 milhões de euros, em média, perfazendo um total aproximado de 140 milhões de euros por ano.

Escuderias como Force India, Williams, STR, Haas e Sauber investem pouco menos disso por ano. Além do repassado pela FOM, a Ferrari tem os seus patrocinadores, que fazem com que o seu orçamento dobre, cenário semelhante ao que ocorre com a Mercedes e RBR. E, se necessário, tem os recursos das próprias indústrias Ferrari e Fiat, assim como a montadora Mercedes e a fábrica de energéticos com suas equipes.

Essa disparidade entre os orçamentos é a razão principal de haver tanta diferença de performance entre os times. O Liberty Media, e sua cultura norte-americana de entender o esporte, deseja acabar com isso, ao menos com o nível desproporcional de hoje, com o objetivo, como descrito, de abrir a possibilidade de sucesso aos demais participantes da F1.

Parte do leão

Todt manifestou-se contrário ao veto da Ferrari, mas não ao critério de os italianos receberem mais que os demais. “Para mim, é normal que Leonardo Di Caprio seja mais bem pago que um ator de um seriado de TV. A vida é assim. Quanto melhor você for, mais ganha.” Mas a Ferrari está, como regra, dentre os protagonistas, também em função dos seus privilégios excessivos, como o tamanho da sua fatia no bolo.

Nem bem os balões de ensaio lançados pelos líderes do Liberty Media chegam aos ouvidos do presidente da Ferrari, e da Fiat, detentora da maior parte das ações da Ferrari, Sérgio Marchionne, o dirigente ameaça sempre da mesma forma: abandonar a F1 se os seus interesses não forem preservados. Em muitas ocasiões eles não correspondem aos interesses da F1, como é o caso do veto e do que é repassado pela FOM a Ferrari, por contrato, todo ano, por sua hereditariedade, independente se a escuderia conquistou o título ou ficou em último.

Ao contrário do receio ou quase pânico de Bernie Ecclestone a essa questão, a saída da Ferrari da F1, Todt consideraria uma perda, sim, mas não comprometeria a sobrevivência do evento. “Eles podem deixar a F1, têm essa opção, são livres. Pessoalmente não gostaria, mas pode sempre acontecer.” E para demonstrar que não se desestabiliza com a notícia, como acontecia curiosamente com Ecclestone, Todt comentou, com naturalidade: “Temos visto grandes equipes abandonando a F1, depois voltando. A escolha é deles”.

Em resumo, a F1 sentiria profundamente a perda da Ferrari, mas como ninguém é imprescindível, sobreviveria. Já as vendas anuais dos 8 mil excepcionais carros de série da Ferrari talvez fossem mais afetadas, mantidas pelo culto à lenda dos veículos vermelhos de Maranello nas pistas. Provavelmente sofreriam um baque maior, senão no primeiro instante, mas com o tempo. Onde quer que a Ferrari fosse competir, e conquistasse títulos, não teria o impacto da F1. Haveria desdobramentos diretos na sua participação nesse mercado de máquinas exclusivas.

Como homem inteligente de negócios que é, Marchionne sabe disso. Se radicalizar com o Liberty Media, a ponto de a situação ficar insustentável, é provável que a direção do grupo Fiat Chrysler reveja sua condição de presidente. É de interesse dos italianos e do Liberty Media que a Ferrari siga na F1, nem que para tanto os dois lados façam concessões, como provavelmente será o desfecho dessa história.

A exemplo do defendido pelo Liberty Media, Todt pensa que algo tem de ser feito para evitar de a F1 atingir o ponto que chegou hoje, mesmo defendendo o direito de a Ferrari ficar com a parte do leão: “Temos seis ou sete times com dificuldades (financeiras) atualmente na F1. Não é aceitável que a competição máxima do automobilismo tenha 60 ou 70% dos seus participantes lutando muito para sobreviver”.

Guerra à vista

Todo o exposto até agora deixa claro o que vem aí pela frente na F1, notadamente fora das pistas. A reestruturação total desse esporte começou a ser debatida quase três anos antes da sua implantação, a partir de 2021, e já causa nem se pode dizer debates acalorados, por não existirem, mas a radicalização de posturas antes mesmo de dirigentes como Marchionne ouvirem as propostas, a sua extensão.

Em entrevista exclusiva ao GloboEsporte.com, em Baku, no Azerbaijão, no ano passado, Brawn comentou: “Se alguém chegasse para mim e dissesse que eu vou receber menos dinheiro do que me destinavam, iria também chiar. Mas se me demostrarem que com um novo regulamento eu gastaria bem menos para competir igualmente com chances de vitória, eu aceitaria”.

Essa é a luta do grupo formado por Brawn. O engenheiro inglês, campeão do mundo na F1 com Benetton, Ferrari, Brawn GP e Mercedes, contratou vários técnicos experientes para junto dos representantes das escuderias e da FIA definir um conjunto de regras que permita ao Liberty Media atingir os objetivos já descritos. Tudo começa com a unidade motriz.

Com lembrou Brawn ao repórter do GloboEsporte.com, em conversa informal, qual o sentido de uma unidade motriz custar mais de 2 milhões de euros e depois de cinco GPs, em 2017, ser simplesmente descartada?

“É possível termos um motor de elevada tecnologia, como tem de ser na F1, mas a um custo mais realista com o mundo de hoje.” Agora, convencer quem sempre foi transportado em um andor, e Ecclestone tem responsabilidade nisso, é extremamente complexo, difícil. O próprio Brawn já entendeu que o desafio é ainda maior do que imaginava.