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Política

Perfil de Raquel Dodge é técnico, rigoroso e discreto, descrevem colegas; conheça a nova procuradora

Ela assume chefia do Ministério Público Federal nesta segunda (18) após 4 anos de gestão de Rodrigo Janot. Em 30 anos de carreira, se destacou no combate ao crime organizado e à corrupção.

G1

18 de Setembro de 2017 - 08:43

Em março de 2013, a subprocuradora-geral da República Raquel Dodge disputava uma cadeira de ministra do Superior Tribunal de Justiça. Ficou em quatro lugar na votação entre os ministros do próprio tribunal e sequer figurou na lista tríplice, apesar da notoriedade conferida pela Operação Caixa de Pandora, que três anos antes resultou na prisão do governador José Roberto Arruda (DF).

“Vai ver o seu destino é ficar no Ministério Público”, consolou a então ministra Eliana Calmon, cabo eleitoral de Dodge e primeira mulher a integrar o STJ.

Quatro anos mais tarde, Raquel Elias Ferreira Dodge se tornou a primeira mulher a chefiar a Procuradoria Geral da República (PGR). Ela toma posse na segunda-feira (18) como sucessora de Rodrigo Janot, que completa quatro anos no cargo neste domingo (17).

Aos 56 anos, Raquel Dodge tem nas mãos o futuro da Operação Lava Jato. Inicia os dois anos de mandato sob as expectativas de políticos que desejam esfriar a operação e de colegas que esperam vê-la confirmar o perfil classificado como rigoroso, técnico e discreto à frente de casos de combate à corrupção. Na última quinta (14), ela convidou os investigadores da Lava Jato que atuam na PGR a permanecer.

“Quem apostar que Raquel será leniente, vai errar. Ela é ambiciosa e sabe que tem um nome a zelar. Seria uma frustração ver o contrário”, projeta o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, contemporâneo de Raquel no MPF.

Paciência e persistência são virtudes atribuídas à nova procuradora-geral. Rigorosa, reservada, fria, sóbria nas palavras e adepta de longas jornadas de trabalho são definições que se repetiram nas mais de 20 entrevistas feitas pelo G1 para elaborar o perfil de Raquel Dodge.

"Quem apostar que Raquel será leniente, vai errar." (Eugênio Aragão, procurador aposentado e ex-ministro da Justiça)

Serena e afável para os amigos, mas autoritária e centralizadora, segundo antagonistas. Aliados e desafetos concordam: é refinada, tem sólida formação jurídica, com mestrado em Harvard, e não desiste no primeiro revés.

Em 2013, ela entendeu o recado de Eliana Calmon, virou a página do STJ e voltou-se ao MPF. Em 2015, participou da eleição interna da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), que entrega ao Palácio do Planalto a sugestão de três nomes para o comando da PGR. Ficou em terceiro no processo que reconduziu Janot.

Passados mais dois anos, em junho, ela foi a segunda mais votada pelos colegas, atrás de Nicolao Dino (621 a 587), o favorito de Janot.

Mesmo assim, o presidente Michel Temer a escolheu, em 28 de junho, dois dias depois de ter sido denunciado por corrupção passiva por Janot.

A decisão de Temer quebrou uma tradição de 14 anos, período em que os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff chancelaram o mais votado da lista da ANPR, e abriu interrogações sobre a postura de Raquel Dodge à frente da maior operação de combate à corrupção do país, que tem o próprio presidente e aliados entre seus alvos.

Por volta das 22h do dia 8 de agosto, ela teve um encontro com Temer, fora da agenda do presidente, na residência oficial do Palácio do Jaburu. Segundo a futura procuradora, os dois discutiram a cerimônia de posse na PGR.

Interlocutores de Raquel Dodge afirmaram ao G1 que a repercussão da reunião a “marcou”. Segundo relatos, ao final do encontro, Temer teria alertado sobre a presença da imprensa na porta do palácio.

A uma confidente, ela reconheceu ter sido “ingênua” por aceitar ir à residência oficial em horário similar ao do empresário Joesley Batista, um dos donos do grupo J&F, que firmou acordo de delação com a PGR. “Creio que ela será mais cuidadosa com horários de agenda”, afirmou uma amiga ouvida pelo G1.

Carreira e oposição a Janot

"Preparei-me para o cargo ao longo de toda a minha carreira", escreveu Raquel Dodge na carta de apresentação enviada ao Senado após ter sido indicada por Michel Temer para a chefia da PGR.

Procuradores, magistrados e advogados entrevistados pelo G1, que conhecem as três décadas da trajetória da nova procuradora-geral no MPF, iniciada em 1987, concordam com a afirmação endereçada aos senadores, que, em julho, por 74 votos a 1, aprovaram em plenário a indicada por Temer.

Ex-coordenadora da câmara responsável pela área criminal no MPF (2010-2014) e promovida a subprocuradora-geral em 2008, Raquel Dodge ganhou respeito entre os colegas em ações de combate à corrupção e ao crime organizado.

Ela também é versada em direitos humanos, integrou a câmara que lida com questões de comunidades indígenas e coordenou grupos sobre trabalho escravo, saúde, educação, discriminação racial e sistema prisional. Antes de ser escolhida procuradora-geral, era suplente na câmara que trata de defesa do consumidor.

"Preparei-me para o cargo ao longo de toda a minha carreira." (Raquel Dodge, em carta ao Senado)

“É uma carreira construída na rua e não nos gabinetes de Brasília”, define o procurador da República Mário Lúcio de Avelar, que participou de forças-tarefa ao lado da nova procuradora-geral nas regiões Norte e Centro-Oeste. Ele atesta a fama de Raquel Dodge de “trator” no trabalho, devido ao rigor com prazos e horários. “Já a vi trabalhar por 14 horas sem reclamar”, recorda.

Esse estilo se manteve nas duas vezes em que esteve grávida e depois, quando amamentava.

“Estávamos em Santarém (PA). Raquel saía da sala para tirar leite e congelar e seguia o trabalho. Na volta da viagem, ela tinha um estoque para o bebê”, conta Domingos Sávio Drech da Silveira, procurador regional da República na 4ª Região.

Nas últimas semanas, durante o período de transição com a gestão de Rodrigo Janot, mais de uma vez procuradores e assessores subiram ao gabinete de Raquel e a viram beliscando queijo branco e frutas no horário de almoço, refeição rápida para não interromper o trabalho.

Ao longo da carreira, Raquel também ficou conhecida por controlar as emoções. Mesmo em discussões ásperas, mantém a firmeza sem alterar a fala ponderada ou recorrer a gestos bruscos.

Os mais próximos aprenderam a identificar os momentos de irritação em sinais externos: as bochechas ficam vermelhas e as batidas dos saltos são mais firmes.

A subprocuradora-geral Sandra Cureau disse ao G1 que, nos últimos anos, o pé de Raquel bateu “com força” por causa de Janot.

“A gente se tornou invisível. Raquel tinha feito um trabalho excelente na 2ª Câmara e ela ficou de suplente da câmara sobre direito do consumidor”, afirma ela, que também postulou a cadeira de PGR neste ano. “Entrei na eleição da ANPR apenas para bater no Janot”, reconhece.

Desde 2013, após a tentativa frustrada de compor o STJ, Raquel reforçou a aposta na política interna, em especial na ANPR e no Conselho Superior do Ministério Público Federal.

O conselho foi palco do embate entre Raquel e Janot sobre estipular limite ao número de procuradores cedidos por uma unidade do Ministério Público Federal a outra.

O caso repercutiu na campanha de Raquel, que, segundo apoiadores, empreendeu esforço quase que “monotemático” para deixar claro que não iria paralisar a Lava Jato.

Na campanha, Raquel acenou a procuradores que atuam em áreas distintas da penal, que se sentiram renegados nos últimos anos, e criou um site no qual adotou o lema “Ninguém acima da lei. Ninguém abaixo da lei”.

A nova chefe do MPF ainda teve o apoio do ministro do STF, Gilmar Mendes. O G1 apurou que o apoio é visto como uma “aliança de ocasião”, motivado pela rivalidade com Janot. “Não são amigos nem frequentam a casa um do outro”, atesta um jurista que conhece os dois.

Crime da motosserra e Caixa de Pandora

Um dos casos que projetou Raquel Dodge dentro do MPF foi a participação na equipe que processou o ex-coronel da PM e ex-deputado federal Hildebrando Pascoal, acusado de liderar um grupo de extermínio no Acre na década de 1990.

Em 2009, Pascoal foi condenado pelo assassinato de um mecânico, esquartejado com uma motosserra em 1996. O filho da vítima foi sequestrado, morto e teve o corpo queimado com ácido.

“Raquel ainda amamentava um dos filhos quando estava no Acre. Tomou os depoimentos de integrantes do esquadrão da morte e não se intimidou”, recorda um dos magistrados que atuou no caso.

No Espírito Santo, ela integrou outra força-tarefa, contra o crime organizado. A apuração resultou na prisão do ex-presidente da Assembleia Legislativa, José Carlos Gratz, em 2003.

Procurador à época, o advogado Henrique Herkenhoff integrou o grupo. “Lembro que Raquel sabia esperar a apuração amadurecer, era combativa sem ser afobada e muito educada nas discussões”, descreve.

O perfil pesou na decisão do então procurador-geral Roberto Gurgel de escolher a subprocuradora para atuar na Operação Caixa de Pandora, deflagrada em 2009 para investigar o esquema de corrupção no Distrito Federal conhecido como mensalão do DEM. Na ocasião, foram feitas delações e ações controladas, técnicas usadas na Lava Jato.

Em fevereiro de 2010, Raquel Dodge entrou na sala de Gurgel com um pedido explosivo: a prisão preventiva do governador José Roberto Arruda, baseada em uma tentativa de suborno ao jornalista Edmilson Edson dos Santos, o Sombra.

“Ela não alterou a voz. Demostrou ponto a ponto que era um caso de prisão”, relembra Gurgel, que no mesmo dia seguiu com Raquel até o STJ.

No gabinete do ministro Fernando Gonçalves, que relatava a Caixa de Pandora, Gurgel apresentou o pedido de prisão. Horas depois, a Corte Especial do STJ referendou a decisão de Gonçalves de decretar a prisão de Arruda.

“Era uma situação com reflexos políticos graves. O governador estava no cargo, mas o pedido redigido estava preciso, sem exageros. Raquel tem uma ótima redação jurídica”, relembra Gonçalves, que já se aposentou do STJ.

Infância em Goiás

Raquel Elias Ferreira – Dodge é o sobrenome do marido – nasceu em 26 de julho de 1961 em Morrinhos, cidade de 45 mil habitantes localizada a cerca de 130 km de Goiânia.

No dia seguinte, a bebê de claros olhos azuis foi batizada na igreja matriz dedicada à Nossa Senhora do Carmo, conforme registro da paróquia obtido pelo G1.

Criada em uma família de católicos praticantes, Raquel herdou do pai, José Rodrigues Ferreira, e da mãe, Ivone Elias Cândido, a fé e o hábito de frequentar missas aos domingos, mantido em Brasília ou durante viagens de trabalho ou férias.

José e Ivone, segundo amigos, criaram os filhos com disciplina e cobrança por boas notas. Com agricultores e vaqueiros na família, José Rodrigues Ferreira pavimentou nos livros a carreira de advogado, juiz e subprocurador-geral, que teve 18 anos dedicados ao mesmo Ministério Público Federal (MPF) que a filha vai comandar até 2019.

Nas carteiras do colégio Coronel Pedro Nunes, em Morrinhos, Raquel orgulhava-se dos boletins repletos de “9 e 10”. “Era exemplar, meiga e calma”, relembra a tia e professora Ivonete Elias Cândido.

Familiar e ex-colega, Marcília Campos reforça o elogio: “Ela sempre foi compenetrada na aula, mas fora brincava com as meninas. Raquel só não era da turma da bagunça”.

Os Ferreira deixaram Morrinhos no início dos anos 1970, quando José, então advogado, passou em concurso para juiz em Goiás. Rodaram o interior do estado até chegar à capital federal, com o patriarca no MPF.

Decidida a seguir os passos do pai, Raquel ingressou no curso de direito da Universidade de Brasília (UnB), famoso por reunir ministros de tribunais superiores e procuradores no corpo docente.

Ex-colegas relembram da jovem aplicada, pequena e magra, bem vestida e sem exageros na maquiagem.

Professor emérito da UnB, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Velloso considera Raquel “uma das melhores alunas” que teve.

“Eu era rigoroso, passava trabalhos grandes e ela nunca atrasava. Você percebia que ela pensava grande”, diz.

A aluna também chamou a atenção dos professores e ministros Francisco Rezek e Marco Aurélio Mello. Formada em 1983, assessorou Rezek no STF e, depois, Marco Aurélio, ainda no Tribunal Superior do Trabalho (TST). Aprovada em segundo lugar no concurso do MPF, iniciou em 1987 a carreira de procuradora.

Família e discrição

Aposentado como subprocurador-geral em 1991, o pai José Rodrigues Ferreira é visto como uma das referências mais fortes de Raquel Dodge, que também mantém ligação estreita com a mãe, com quem divide as feições do rosto e o gosto pela costura.

A família é o esteio de Raquel. O já estreito laço foi reforçado quando, em meio à campanha pela PGR, o câncer vitimou um dos irmãos da nova procuradora-geral, que segurou o baque e manteve a agenda.

Desde 1992, Raquel é casada com o norte-americano Bradley Dodge, que trabalha na Escola das Nações, instituição bilíngue (inglês-português) que educa herdeiros de diplomatas e das elites de Brasília e onde estuda Michelzinho, filho mais novo do presidente Michel Temer.

O casal se conheceu quando Raquel já planejava aprimorar o domínio da língua inglesa para estudar nos Estados Unidos, plano concretizado com o mestrado na Harvard Law School (2006-2007) e com a participação no programa de direitos humanos da instituição.

Da união com Bradley, nasceram Eduardo e Sophia, que não seguiram a veia jurídica dos Ferreira, mas também rumaram aos Estados Unidos para estudar.

Amigos descrevem Raquel como uma pessoa dividida entre trabalho e família e preocupada com questões de igualdade de gênero.

Na vida social, são raras as aparições da procuradora-geral em jantares do meio jurídico ou em restaurantes badalados. Colegas de trabalho também sabem poucas informações pessoais. Uma das raras que escapa é o gosto pelo jazz.

“Conheço a Raquel há 28 anos, sei que ela é uma ótima mãe, mas não faço ideia, por exemplo, se ela frita um ovo. Raquel separa trabalho e lado pessoal e cuida cada palavra que diz ou escreve. Acredito que vai continuar assim”, afirma o procurador Domingos da Silveira.