INTERNACIONAL
Trump amplia ofensiva e eleva tensão com a Venezuela e a Colômbia
Lula critica intervenção dos EUA e defende América Latina como "zona de paz".
Semana On
23 de Outubro de 2025 - 14:20

Os Estados Unidos intensificaram nas últimas semanas suas operações militares no Caribe, alegadamente para combater o tráfico de drogas, mas levantando suspeitas de uma escalada deliberada contra a Venezuela. Desde o início de setembro, sete ataques a embarcações deixaram ao menos 32 mortos, segundo dados oficiais. A Casa Branca justifica as ações como medidas de autodefesa nacional, em resposta ao aumento das mortes por overdose — embora especialistas apontem que a principal causa dessas mortes, o fentanil, tenha origem no México, não na América do Sul.
Apesar da alegação de que os ataques ocorreram em águas internacionais, embarcações de outras nacionalidades foram atingidas, ampliando o impacto geopolítico da operação. Em 15 de setembro, um pescador colombiano foi morto durante uma ofensiva norte-americana, o que levou o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, a acusar os EUA de “assassinato”. Um mês depois, em 14 de outubro, dois cidadãos de Trinidad e Tobago morreram em circunstâncias semelhantes.
O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, reagiu com dureza, classificando os ataques como um “crime hediondo” e prometendo responder a qualquer nova ação com “luta armada”. Indiciado nos EUA por narcotráfico em 2020, Maduro tornou-se alvo de crescente pressão por parte da administração Trump, que vem articulando uma nova ofensiva política e militar para acelerar sua queda.
Legalidade sob questionamento
Especialistas em direito internacional têm criticado a estratégia norte-americana de tratar suspeitos de narcotráfico como combatentes inimigos, alegando que o tráfico marítimo é tradicionalmente uma questão de ordem policial e não militar. Ainda assim, a Casa Branca declarou em 15 de setembro que o presidente Trump autorizou o início formal de um “conflito armado” contra cartéis classificados como organizações terroristas.
O emprego de força militar desproporcional para interceptar pequenas embarcações contrasta com dados das próprias agências americanas. Relatório recente da Agência Antidrogas dos EUA (DEA) apontou que 84% da cocaína apreendida no país provém da Colômbia, sem qualquer menção à Venezuela.
A rota principal do narcotráfico entre a América do Sul e os EUA, de acordo com a própria administração Trump e a ONU, se dá pelo Oceano Pacífico — e não pelo Caribe, onde milhares de soldados americanos foram posicionados. Em 2025, a chamada Operação Pacific Viper, realizada no Pacífico, apreendeu mais de 45 toneladas de cocaína. Em agosto, a Guarda Costeira dos EUA anunciou o maior descarregamento de drogas da história da corporação, com 34 toneladas de entorpecentes desembarcadas na Flórida.
Objetivo velado: desestabilizar o regime de Maduro
Fontes diplomáticas apontam que a intensificação das ações militares no Caribe não se justifica pelos dados sobre o fluxo de drogas, e sim por uma tentativa de desestabilizar a base de apoio militar do governo venezuelano. O bloqueio naval serviria para cortar fontes de renda de setores das Forças Armadas supostamente envolvidos com o narcotráfico, incentivando deserções.
Durante seu primeiro mandato, Trump já havia articulado estratégias para minar a fidelidade dos militares a Maduro. A CIA chegou a montar uma força-tarefa para operar ciberataques ao sistema de pagamento dos militares venezuelanos, como forma de pressionar os oficiais a apoiar Juan Guaidó, autodeclarado presidente interino da Venezuela e apoiado por Washington.
John Bolton, ex-conselheiro de Segurança Nacional, revelou em suas memórias que Trump acreditava que Guaidó “derrubaria Maduro”, mas o presidente americano teria perdido a confiança no opositor com o tempo, considerando-o “fraco” diante da resiliência do líder chavista.
Dissidências internas e substituições no Comando Sul
A atual operação militar gerou divisões dentro da própria estrutura de governo dos EUA. O Pentágono anunciou que as ações antinarcóticos na América Latina deixaram de ser lideradas pelo Comando Sul, com sede em Miami — tradicionalmente responsável por essas operações — e passaram ao comando de uma força-tarefa da II Força Expedicionária de Fuzileiros Navais, especializada em operações rápidas no exterior.
A mudança foi acompanhada pela renúncia antecipada do almirante Alvin Holsey, comandante do Comando Sul, em meio a tensões com o secretário de Defesa, Pete Hegseth, que o considerava “lento e pouco agressivo”. Holsey, por sua vez, teria manifestado preocupações sobre a legalidade das ações conduzidas no Caribe.
No Congresso, parlamentares democratas também criticaram a escalada. O senador Jack Reed, membro do Comitê de Serviços Armados, afirmou que “não há evidências de que os ataques tenham ocorrido em legítima defesa”, o que violaria tanto a legislação nacional quanto normas do direito internacional.
“As Forças Armadas dos EUA simplesmente não têm autoridade para usar força letal contra uma embarcação civil, a menos que atuem em legítima defesa comprovada”, alertou o senador.
Com o aumento da tensão, cresce também o temor de uma nova frente de conflito na América Latina, alimentada por interesses estratégicos que vão além da retórica oficial de combate ao narcotráfico.
Trump acusa Petro de narcotráfico e Colômbia convoca embaixador
A tensão na América do Sul ganhou novo capítulo no último da 19, após Trump acusar publicamente o presidente colombiano, Gustavo Petro, de ser um “líder do tráfico de drogas ilícitas”. A declaração, feita em sua rede social Truth Social, foi acompanhada do anúncio de que os EUA suspenderiam “pagamentos e subsídios em larga escala” à Colômbia.
“O objetivo dessa produção de drogas é a venda de grandes quantidades do produto para os Estados Unidos, causando morte, destruição e caos”, afirmou Trump, sem apresentar evidências. A Casa Branca e o Departamento de Estado não comentaram as declarações até o fechamento desta edição.
Em resposta, Petro convocou o embaixador colombiano em Washington, Daniel García Peña, para consultas em Bogotá. O Ministério das Relações Exteriores informou que o governo anunciará “as decisões tomadas a respeito” nas próximas horas. Em tom duro, Petro rebateu as acusações afirmando que os EUA violaram a soberania marítima da Colômbia ao realizar uma operação militar no Caribe que resultou na morte de um pescador colombiano.
“Funcionários do governo dos EUA cometeram um assassinato e violaram a soberania de nossas águas territoriais”, declarou Petro. Segundo ele, a vítima, Alejandro Carranza, era um pescador que teve um problema no motor e emitiu um sinal de falha. “O barco estava à deriva. Estamos aguardando uma explicação do governo dos EUA.”
Aliados históricos em rota de colisão
As relações entre Bogotá e Washington atravessam o pior momento em décadas. Desde o retorno de Trump à presidência, a Casa Branca endureceu sua postura em relação ao governo colombiano. No mês passado, os EUA revogaram o visto de Petro após sua participação em uma manifestação pró-Palestina em Nova York, na qual o presidente colombiano pediu que soldados norte-americanos desobedecessem ordens de Trump.
A retórica agressiva do republicano representa uma guinada nas relações bilaterais. A Colômbia, que por anos foi um dos maiores beneficiários da ajuda dos EUA na América Latina, viu os repasses serem abruptamente interrompidos após o fechamento da USAID no país — agência de assistência internacional do governo norte-americano.
Em setembro, Trump já havia listado a Colômbia entre os países que, segundo sua administração, “falharam comprovadamente” em cumprir acordos antinarcóticos. Além da Colômbia, também foram citados Afeganistão, Bolívia, Mianmar e Venezuela.
Petro reage: “Você é ignorante sobre a Colômbia”
Em sua reação, Gustavo Petro acusou Trump de manipulação e desconhecimento da realidade colombiana. “Você é grosseiro e ignorante em relação à Colômbia”, disse em sua conta no X (antigo Twitter). O presidente colombiano ainda destacou que sua trajetória política não inclui ligações com o narcotráfico e ironizou o perfil empresarial do norte-americano: “Se eu não sou um empresário, muito menos sou um traficante. Não há ganância em meu coração.”
Em outra publicação, Petro criticou os conselheiros de Trump: “Ele foi enganado por seus camaradas. Recomendo que leia a Colômbia com atenção e determine de que lado estão os traficantes e de que lado estão os democratas.”
Lula critica intervenção dos EUA e defende América Latina como “zona de paz”
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que a integração educacional entre os países da América Latina é estratégica para garantir maior independência da região e evitar que “presidente de outro país” ouse falar grosso com o Brasil. A declaração ocorre em meio à escalada de tensões provocada pelas recentes ações militares dos Estados Unidos contra embarcações venezuelanas, sob pretexto de combate ao narcotráfico, e ataques ao presidente da Colômbia.
Em pronunciamento no Palácio Itamaraty, durante a recepção de 28 novos embaixadores, Lula não mencionou diretamente os EUA, mas condenou com veemência as intervenções estrangeiras no continente. “Intervenções estrangeiras podem causar danos maiores do que o que se pretende evitar”, disse o presidente, destacando que a América Latina é uma região livre de armas de destruição em massa e de conflitos étnicos ou religiosos.
A fala ecoa o posicionamento assumido na semana passada, quando Lula enfatizou que “manter a região como zona de paz é nossa prioridade”. Segundo ele, a atual conjuntura é marcada por “crescente polarização e instabilidade”, e a soberania dos povos latino-americanos deve ser respeitada. “Não é nenhum presidente de outro país que tem que dar palpite de como vai ser a Venezuela ou vai ser Cuba”, afirmou em evento público.
A tensão com os EUA
De acordo com reportagens publicadas pela imprensa dos EUA, o Exército do país teria lançado ao menos seis ataques contra embarcações suspeitas de ligação com o narcotráfico, resultando na morte de dezenas de pessoas.
A ofensiva militar foi recebida com preocupação por países latino-americanos. Um documento conjunto, assinado pelo Brasil e por grande parte dos governos da região, manifestou “profunda preocupação” com a presença militar “extra-regional” no Caribe — uma referência indireta à movimentação de navios, submarinos e tropas dos EUA nas proximidades da Venezuela.
Internamente, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) aprovou uma moção de repúdio contra a ação norte-americana, classificando-a como uma ameaça à paz continental. “Trata-se de um claro sinal de que a América Latina está novamente sob risco de sofrer intervenções que não respeitam sua autodeterminação”, afirmou o documento, aprovado em plenária nacional da entidade.
Soberania e multilateralismo
Além da crítica à presença militar dos EUA, Lula defendeu o fortalecimento de uma política externa baseada no multilateralismo, na cordialidade e no respeito aos direitos humanos. “O que nós queremos é mostrar ao mundo que precisamos fortalecer o multilateralismo — e o multilateralismo é baseado em boas relações comerciais, econômicas e, sobretudo, pacíficas, sem ódio e sem negacionismo”, declarou aos diplomatas.
A mudança de tom em relação aos Estados Unidos também reflete a tentativa do governo brasileiro de reposicionar o país no cenário internacional após anos de instabilidade diplomática. Lula, que já adotou discursos mais duros contra Washington em outros mandatos, tem mantido postura mais pragmática desde a retomada das negociações bilaterais sobre tarifas, que devem ser discutidas em reunião com o presidente Joe Biden na próxima semana, na Malásia.
Apesar da diplomacia ativa, o presidente brasileiro insiste que o destino da América Latina deve ser decidido pelos próprios latino-americanos. A proposta de projetos conjuntos de educação entre os países do continente, segundo ele, é uma forma de consolidar uma identidade regional autônoma, menos sujeita a influências externas.
Histórico de ingerências
A crítica de Lula às intervenções estrangeiras encontra eco em análises acadêmicas e históricas. Segundo o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro, professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, “a América Latina foi, ao longo do século XX, palco de dezenas de intervenções militares dos EUA, quase sempre sob o argumento de estabilizar governos ou combater ameaças ideológicas”.
Casos emblemáticos como o golpe na Guatemala (1954), a invasão da Baía dos Porcos em Cuba (1961) e a ocupação do Panamá (1989) revelam um padrão de ingerência norte-americana na região. Hoje, mesmo sob nova roupagem — como o combate ao tráfico ou à corrupção —, os movimentos dos EUA ainda geram receios sobre violações da soberania regional.
A defesa de Lula por uma América Latina integrada, educada e autônoma encontra respaldo também na obra de Celso Amorim, ex-chanceler e atual assessor especial da Presidência para assuntos internacionais. Em seu livro A Grande Estratégia do Brasil (2022), Amorim argumenta que a soberania regional só será possível com “cooperação profunda em áreas estruturantes como educação, ciência e defesa”.




