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Lei Maria da Penha completa 19 anos em meio à escalada da violência contra a mulher

Lei Maria da Penha, criada em 2006 com o objetivo de prevenir a violência.

Página 1 News

07 de Agosto de 2025 - 13:32

Lei Maria da Penha completa 19 anos em meio à escalada da violência contra a mulher
Em média, quatro mulheres morrem por dia vítimas de feminicídio

A Lei Maria da Penha, criada em 2006 com o objetivo de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, completa 19 anos neste 7 de agosto. No entanto, a celebração do marco legal se dá em meio a uma dura realidade: o Brasil permanece sendo palco de uma violência brutal e persistente contra mulheres, muitas vezes diante da total inoperância do poder público. A legislação, considerada uma das mais avançadas do mundo, ainda não saiu do papel na sua plenitude, tornando-se para muitas vítimas uma esperança frustrada.

De acordo com dados do mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o país registra em média quatro feminicídios por dia, além de mais de dez tentativas de assassinato diariamente. O mais alarmante é que, em 80% dos casos, os agressores são companheiros ou ex-companheiros das vítimas. O dado escancara o ciclo de violência que se perpetua dentro dos próprios lares, em ambientes onde essas mulheres deveriam se sentir seguras.

Ainda mais grave é o fato de que muitas dessas vítimas estavam sob medida protetiva de urgência quando foram assassinadas. Ao menos 121 mulheres morreram mesmo após acionarem o sistema judicial. O número expõe a falência de um aparato legal que deveria resguardar vidas, mas que, por omissão ou desarticulação entre os órgãos de segurança, acaba contribuindo para o desfecho trágico.

Segundo especialistas, o problema não está na letra da lei, mas sim na falta de políticas públicas eficazes para sua implementação. A pesquisadora Isabella Matosinhos, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destaca que o instrumento das medidas protetivas é fundamental, mas sua aplicação tem sido ineficaz. Em 2024, das 555 mil medidas concedidas, pelo menos 101 mil foram desrespeitadas pelos agressores. Trata-se de um índice alarmante que revela a fragilidade do sistema em garantir o cumprimento da lei.

Desde 2019, as medidas protetivas podem ser concedidas também por autoridades policiais, além do Judiciário. Apesar da mudança ser vista como um avanço, a aplicação ainda encontra barreiras logísticas e estruturais, especialmente em regiões interioranas onde o acesso à Justiça e aos serviços de apoio é precário. Os dados de descumprimento dessas medidas e de mortes ocorridas sob proteção, inclusive, podem estar subnotificados.

Outro ponto crucial é a falta de integração entre os serviços que deveriam atuar em rede para acolher a mulher em situação de risco. Saúde, assistência social, segurança pública e Justiça raramente operam de forma coordenada. Esse descompasso impede que as vítimas recebam apoio integral e eficaz. A precarização dos serviços nas pequenas cidades e zonas rurais agrava ainda mais o problema.

A professora Amanda Lagreca, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que a aplicação da lei depende diretamente da atuação do Estado. Ela alerta que é preciso olhar para a complexidade da vida das mulheres brasileiras, que muitas vezes são jovens, negras, moradoras de periferias e com pouco acesso a serviços públicos de qualidade. De acordo com o anuário, 63,6% das vítimas de feminicídio eram negras, e 70,5% tinham entre 18 e 44 anos.

Mesmo sendo considerada um marco internacional e já reconhecida pela ONU como modelo de combate à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha enfrenta o paradoxo de sua própria existência: é admirada, mas não aplicada com a seriedade que exige. A legislação trouxe avanços, como o reconhecimento da violência psicológica como crime e a possibilidade de o agressor ser obrigado a participar de grupos reflexivos, mas esses mecanismos ainda esbarram em uma cultura institucional que não prioriza o combate à violência de gênero.

As pesquisadoras também alertam para o risco de se adotar apenas medidas punitivistas, como o aumento de penas, sem investir em políticas de prevenção. A transformação real, afirmam, passa por uma mudança de consciência coletiva e por educação desde a infância sobre igualdade de gênero, respeito e direitos humanos.

Em um país onde há duas ligações por minuto para denunciar violência doméstica, não é possível celebrar o aniversário de uma lei sem enfrentar o paradoxo da sua ineficácia prática. As mulheres brasileiras continuam sendo mortas por serem mulheres. E enquanto o Estado não for capaz de garantir o mínimo — sua proteção e integridade física — a democracia seguirá sendo um projeto incompleto para metade da população.