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IBGE aponta que 34 mil crianças entre 10 e 14 anos vivem em união conjugal no País
Segundo especialista, vulnerabilidade social, violência, adultização precoce e ausência de políticas de proteção estão entre os principais motivos que expõem os jovens ao fenômeno.
Correio do Estado
10 de Novembro de 2025 - 10:39

O Censo 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou que mais de 34 mil pessoas entre 10 e 14 anos vivem algum tipo de união conjugal no Brasil.
O levantamento mostra ainda que, entre jovens de 10 a 19 anos, mais de 1 milhão de pessoas vivem como casadas, a maioria em uniões informais. Desse grupo de 10 a 14 anos, quase 8 em cada 10 (77%) são mulheres, segundo o IBGE.
O instituto ressalta que os números se baseiam em autodeclarações dos moradores e não representam comprovação legal das uniões. As respostas podem refletir percepções pessoais ou erros de preenchimento.
Embora o casamento civil com menores de 16 anos seja proibido desde 2019, os números apontam para uma realidade ainda marcada pela desigualdade e pela adultização precoce de meninas em situação de vulnerabilidade social, segundo a psicóloga Rafaela Schiavo.
“As infâncias brasileiras são muito diferentes entre si. Enquanto algumas crianças vivem o brincar e o cuidado protegido, outras, desde cedo, assumem responsabilidades adultas, cuidam de irmãos, limpam a casa, fazem comida. São meninas que deixam de ser crianças porque precisam sobreviver”, analisa Rafaela, que é psicóloga perinatal, profissional que, entre outras especialidades, dedica-se ao estudo e a orientações sobre planejamento familiar.
Rafaela lembra que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante o direito de brincar, estudar e ser cuidada, princípios que ainda não alcançam grande parte das crianças brasileiras.
“A infância é uma fase protegida por lei, mas que na prática ainda é negada a milhões”, destaca a especialista.
INFÂNCIA INTERROMPIDA
Para Rafaela, o fenômeno reflete as condições de vida em comunidades marcadas pela escassez e pela falta de acesso a políticas públicas.
“É comum que meninas muito novas passem a desempenhar papéis de cuidadoras para que as mães possam trabalhar. Elas crescem em um ambiente em que a infância é substituída pela necessidade de sustentar o lar, o que as coloca em um processo de amadurecimento forçado”, explica Rafaela, que está à frente de um instituto, em São Paulo, de qualificação em Psicologia Perinatal e Parentalidade.
A especialista destaca que o dado do Censo não deve ser interpretado de forma homogênea.
“Não estamos falando da mesma adolescência vivida por jovens de classe média. Em regiões marcadas pela vulnerabilidade social, há meninas de 10 anos que já cuidam de irmãos e da casa desde os 7 anos. Essa realidade precisa ser entendida dentro do contexto social e histórico em que está inserida”, pontua.
FUGA DA VIOLÊNCIA
Em muitos casos, as uniões precoces surgem como tentativas de escapar de ambientes violentos, observa Rafaela Schiavo.
“Há meninas que sofrem abuso sexual dentro de casa e veem em uma relação com um homem mais velho uma saída possível. Não é uma escolha consciente, é uma forma de buscar menos dor, ainda que isso também representa outro tipo de violência”, afirma.
Segundo a psicóloga, a cognição de uma criança de 10 a 14 anos ainda não está desenvolvida o suficiente para decisões dessa natureza.
“Antes dos 15 anos, o cérebro ainda está em formação. Falta maturidade cognitiva e emocional para avaliar riscos, prever consequências e fazer escolhas complexas. Essas meninas não decidem, elas reagem ao contexto em que vivem”, complementa.
Rafaela observa que, ao sair de um lar violento para viver uma união precoce, muitas meninas continuam expostas a novas formas de violência.
“Muitas deixam a escola, engravidam e tornam-se as principais responsáveis pela casa e pelo filho. Quando o relacionamento termina, ficam ainda mais vulneráveis, sem rede de apoio, sem renda e sem estudo. É a repetição de um ciclo de exclusão que atinge gerações”, alerta.
EDUCAÇÃO E PREVENÇÃO
Rafaela defende que romper esse ciclo exige políticas públicas voltadas à parentalidade e ao fortalecimento familiar.
“Essas uniões geralmente acontecem em lares afetados por múltiplas violências, uso de drogas, desemprego, negligência, abuso. Intervir apenas na consequência é ineficaz. Precisamos de programas estruturados de educação parental, que ensinem boas práticas de cuidado e ajudem os pais a desenvolver competências socioemocionais para criar seus filhos”, afirma.
A psicóloga explica que iniciativas desse tipo deveriam rastrear famílias em situação de risco e oferecer acompanhamento contínuo.
“Projetos que avaliam o perfil parental, orientam mudanças de comportamento e mostram como isso reflete em um futuro melhor para os filhos são o caminho para quebrar o ciclo da vulnerabilidade social”, aponta.
Experiências isoladas de universidades e organizações sociais, de acordo com a especialista, já promovem esse tipo de ação. Rafaela reforça, porém, que o País ainda precisa avançar.
“O Brasil tem caminhado em temas da perinatalidade, período que precede e sucede imediatamente o nascimento, mas precisamos evoluir também na parentalidade. Entender que cuidar dos pais é uma forma de proteger as crianças. Isso é investir no futuro”, afirma.




